quarta-feira, 30 de abril de 2008

domingo, 27 de abril de 2008

Ouvindo Beethoven

Pôr do sol nos campos do Baixo Vouga


Sonata nº 32 para piano
(2º andamento)

http://www.youtube.com/watch?v=-cpLyRNePV0

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Estender os olhos em sossego

Campos do Baixo Vouga, perto de Sarrazola

Dia de sol. Acabo de passar a ponte sobre o Vouga, encosto o carro à sombra de uns salgueiros, o rio mesmo ali, cem metros abaixo a ponte velha de cimento agora sem préstimo, vedada nos topos com blocos de cimento não vá alguém lembrar-se de a atravessar de carro ou de tractor
(ele há gente capaz de tudo e mais agora que está na moda o radical)
e só parar na água, o tabuleiro cheio de corcovas, só faltam os cavalinhos e as girafas para parecer um carrossel. Apenas um ou outro pescador lhe dá ainda alguma serventia, é uma forma de passar o tempo estar ali horas esquecidas a olhar a bóia na água, a serrazinar os peixes
- Então picas ou não picas?
a pensar na morte da bezerra, a passar pelas brasas se nem peixes nem bezerra.
Para lá da ponte velha a larga recta do Rio Novo do Príncipe, reflexos de árvores na água escura, lá muito ao fundo, no canal que a distância afunila, a ponte de Vilarinho, e já aqui, à direita, o rio velho, que era esse antigamente o seu caminho.
São nove e cinco
(a hora não interessa nada, mas são nove e cinco)
quando começo a caminhada. Vou andando pela estrada de cimento
(para mim é a estrada de cimento, como um outro caminho mais à frente é o caminho das amoras, um outro o caminho da comporta e outro ainda o caminho da vala, fui eu que os descobri para mim, acho-me no direito de os nomear a meu gosto).
Vou sozinho e isso não me incomoda
(o Rómulo de Carvalho a justificar-me
- Gosto muito de estar comigo
e eu a concordar com ele, a dizer que sim com a cabeça).
À direita uma vala, plantas aquáticas, caniços e, para lá da vala, ladridos de cães sem cães, campos, árvores, pastos
(verde, verde, verde)
vacas
(não as vacas Mac Donald's em campos de concentração, com mugidos de lamento, sem ponta de verde, sem nada que se pareça com verde, não)
vacas na erva, no verde, espaço à farta, sombras
(até para ser vaca é preciso ter sorte)
campos de cultivo, milharais fechados por cortinas de árvores.
De um e outro lado da estrada, bordejando-a, salgueiros, amieiros, choupos, um ou outro carvalho, silêncio, o coaxar das rãs, silêncio, o canto dos pássaros, silêncio, o zumbido distante de um tractor, outra vez um latido de cão, agora mais longe, e de novo silêncio, silêncio, e tantos verdes no verde, e o azul por cima, e o vento, e o sussurro da folhagem.
Uma carrinha de caixa aberta que vem das minhas costas buzina ao passar, um braço estende-se fora da cabine numa saudação, respondo com um erguer de braço, sem palavras, só o braço
- Bom dia, amigo
dois braços que se conhecem já de outras vezes por ali, basta levantarem-se para dizerem o que é preciso, e não mais do que isso. A carrinha pára umas centenas de metros à frente, quando lá chego ficamos um bocado à conversa
(não os braços agora, nós inteiros)
pouco tempo, coisas banais, e sigo.
De novo o silêncio, uma breve hesitação
- Vou por aqui ou por ali?
lembro-me dos cães que, por ali
(o caminho das amoras)
me costumam saltar ao caminho, ameaçar as canelas, mas venço a cobardia com a ajuda de uma vara que apanho do chão
(também já descobri que ao gesto, basta o gesto, de me baixar para apanhar uma pedra os cães tornam-se de súbito cordatos, retiram-se discretamente pedindo desculpa pelo incómodo
- Pode passar, esteja à vontade, não o tínhamos reconhecido).
Já se vêem amoras, ainda verdes, nem sequer vermelhas, quando estiverem pretas, lá para Agosto, hei-de fartar-me, a Carolina há-de vir comigo algumas vezes, gosta muito de amoras como eu, já estou a vê-la
- Olha, avô
a estender a mão
- Essa não, Carolina, ainda está verde
a meter amoras pretinhas à boca, às vezes a lambuzar-se toda em saltinhos de contentamento.
Passo o começo do esteiro que vai dar à comporta, há um caminho por aí mas hoje não, sigo ao longo da vala para nascente
(este, leste, obrigado, D. Célia, sempre me serviu de alguma coisa aprender os pontos cardeais nas aulas de Geografia).
É costume encontrar cegonhas por estes lados, e garças, no Inverno e no começo da Primavera também patos, os milhafres todo o ano planando lá no alto, máquinas perfeitas de voar, e de novo o silêncio, o canto dos pássaros dentro do silêncio, o verde a toda a volta, o azul por cima, o vento nas ramagens
(tão doce o vento nas ramagens)
o mundo subitamente em paz, o coração num pulsar tranquilo a estender os olhos em sossego e a desejar que o tempo não passe.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Ouvindo Schubert

Lieder (Nacht und Traume)






http://www.youtube.com/watch?v=nLhuhDhPncA

Monsaraz

O sol
é um punhal
ardente.
A luz
esventra
todas as
penumbras.
E no
silêncio
pungente
o branco
grita
torturado.
Uma fímbria de sombra jaz sob um beiral.

domingo, 20 de abril de 2008

Quem é que vai acreditar que já fui menina?

Hoje
(para dizer a verdade quase todos os dias, ou todos os dias mesmo)
a velhice acudiu-me à cabeça enquanto descansava
(tentava descansar)
os ossos no meu canto do sofá
(passam a vida a reclamar agora os ossos)
e repisava os azedumes da vida, quer dizer, não já propriamente vida, este ramerrão magoado em que o melhor que me atrevo a esperar de cada dia é que não me traga nada pior que o anterior.
Quando foi que me tornei velha? Só sei que olho para o espelho
- Quando é que ficaste assim velha, Natércia?
e a Natércia que o espelho me devolve não tem nada daquela Natércia que está na fotografia em cima da cómoda, e no entanto sei que já fui ela e lembro-me de que quando era ela pensava, como toda a gente
(acho que toda a gente)
pensava
- Nunca hei-de ser velha
ou nem sequer pensava no assunto, qual velhice, a velhice é para aqueles jarretas que tiveram a infelicidade de nascer há muito tempo, agora eu, tanta vida pela frente. Isso quando era aquela da fotografia, mas mesmo muito depois, quer dizer, há uns doze, quinze anos atrás, quem me havia de dizer
- Quem te havia de dizer, Natércia
o que o espelho me atira agora à cara sem nenhuma compaixão, isto apesar de já nessa altura algumas partes do corpo me irem beliscando o sossego
- Ainda hás-de ficar um trambolho como aquela
mas eu sem querer acreditar
- Ficar assim, eu?
Agora, quando saio à rua
(quando me arrasto até à rua, raspando os sapatos no chão em passinhos miúdos)
vejo a lástima que sou nos olhos dos outros, nos olhares disfarçados por detrás dos olhares sorridentes
- A Natércia, coitada, quem a viu e quem a vê
ao que cheguei, ter de sofrer a pena dos outros, o dó de mim mesma
(que treta essa história de dizerem que velhos são os trapos, quando lá chegarem vão ver se são só os trapos)
- Estás um trapo, Natércia
e o espelho a concordar, sentir-me humilhada por mim mesma por me ter tornado este trambolho ambulante
(cada vez menos ambulante para dizer a verdade)
isto apesar de
- Então, D. Natércia, está com óptimo aspecto
como se eu não soubesse o que óptimo quer dizer, eu a ver a mentira à légua, vejo mal mas ainda consigo ver-me ao espelho
(nessas ocasiões acho que até gostava de ver pior)
apetece propor
- Quer trocar?
mas ainda que o aspecto fosse já não digo óptimo, ao menos bom
(que nem por sombras)
e o resto, o que não se vê, as vísceras num desarranjo permanente apesar de montes de comprimidos todos os dias que às vezes até me baralho, o coração sempre a avisar-me
- Julgas que tens vinte anos?
obrigar-me a parar quatro ou cinco vezes para subir a miséria de dois lanços de escadas em passo de caracol e mesmo assim sabe Deus, eu que em nova subia três e quatro andares com uma perna às costas, a espinha aos gritos por coisas de nada, um calvário calçar os sapatos, apanhar uma porcaria qualquer do chão, a esferográfica de fazer as palavras cruzadas, para não ir mais longe, que o sono às vezes faz deslizar para a carpete
(um nevoeiro de chumbo a pesar-me na cabeça, a fazê-la despenhar-se, o queixo numa pancada contra o peito a travar-lhe abruptamente a queda, a fazê-la subir de novo como uma bola atirada ao chão, na televisão por instantes vultos indistintos, palavras sem sentido, o nevoeiro a adensar-se de novo, o queixo outra vez a descair)
um calvário portanto apanhar uma porcaria qualquer do chão, a esferográfica de fazer as palavras cruzadas por exemplo
(acho que já tinha dito isto, ou não? Bem, tanto faz)
para já não falar do cocó do cão
(que é quem ainda me vale para ter alguma companhia desde que Deus levou o meu Ernesto)
quando o levo a arejar à rua, já me lembrei de fazer como os vizinhos que deixam a trampa dos cachorros espalhada por todo o lado, uma vez até por descuido
(que eu ando sempre a olhar para o chão por causa disso)
aconteceu-me pisar um cocó, o trabalhão que foi para fazer desaparecer o pivete dos sapatos, sabões, detergentes, escovas, até uns borrifos da minha água de colónia que me farto de poupar porque para a miséria da minha pensão é caríssima
(mas também não posso andar por aí a tresandar a velha, não é?)
e mesmo assim durante uma semana parece que tudo me cheirava a cocó de cão.
Um calvário, tudo por causa dos ossos desconjuntados numa reclamação uníssona, numa vozearia rangente que me parece atrair as pessoas às janelas, às vezes até me lembro do meu falecido Ernesto que Deus tenha em descanso, também se queixava muito dos ossos, coitado, ele a queixar-se das costas
- Ando com umas pontadas aqui em baixo
e eu a animá-lo
- É o tempo que está a mudar
(ela a pensar que me animava mas eu
- Porque é que quando eu tinha vinte anos o tempo nunca mudava?
e não eram só os ossos, claro, outras coisas, as noites mal dormidas, a próstata a fazer-me levantar três e quatro vezes para ir à casa de banho, ficar uma eternidade sentado na sanita a gotejar esforços, voltar para a cama a arrastar as chinelas sonolentas, a matutar na última consulta
- O senhor doutor acha que vai ser preciso fazer a operação?
e o médico a pensar que me sossegava

- Quando sai ainda não precisa de fazer um mapa dos urinóis da cidade, pois não?
mas o certo é que as noites eram um desassossego, deita, levanta, deita, levanta, e afinal foi mesmo a próstata, vá lá a gente fiar-se nos médicos)
mas o que o levou foi mesmo o malzinho da próstata, tão magro para o fim que até fazia impressão olhar para ele, coitado, que Deus o tenha em descanso.
Às vezes ganho coragem
(que é preciso coragem, não julguem que não)
e ponho-me a olhar para mim mesma, as pernas, por exemplo
- Quem me trocou as pernas?
cordas e nós arroxeados, nos pés joanetes triunfantes como cabos avançando pelo mar dentro
(o Dr. Gaspar
- Natércia, diga lá os cabos da costa portuguesa
e eu sempre com medo de falhar algum, eu que até gostava tanto de Geografia
- Cabo Carvoeiro, cabo da Roca, cabo Espichel
nesse tempo não tinha cabos nos pés, agora dois grandes cabos)
Carvoeiro? Espichel?
não de certeza o da Boa Esperança, esperança agora em quê, só se for em que os joanetes não vão por aí fora furiosos ameaçando ainda mais furar os sapatos, um martírio arranjar sapatos, sempre dois números acima para poder acomodar os joanetes, depois os pés enormes
(não os pés, claro, os sapatos, mas os pés para todos os efeitos)
para um corpo que teima em não parar de mingar, esperança agora em quê, portanto, só se for em que os joanetes
(cabos)
não vão por aí fora, em que não me engrossem ainda mais as cordas e os nós das pernas, estes trambolhos que já não me querem obedecer, uma a avançar a outra a ficar para trás, renitente
- Já disse que não posso
a acabar por vir mas hirta, de má vontade, emperrando no chão, até outro dia estatelei-me ao comprido no passeio, a carteira à banda no chão largada na aflição da queda
- Ai, meu Deus
uma bola de carne inerte a encher o passeio por instantes
(uma eternidade?)
a ensaiar movimentos desajeitados como uma barata voltada sobre a carapaça a agitar as perninhas, a conseguir por fim pôr-me a quatro, uma voz algures a aproximar-se
(a humilhação a aproximar-se)
- Espere aí que eu ajudo-a
eu a fazer recuar as mãos no chão, a arquear as costas à medida que as mãos se iam aproximando dos pés, a procurar um ponto de equilíbrio, a tentar erguer-me num esforço retesado de carnes flácidas, uma eternidade depois um gemido de pé
- Ai, meu Deus
eu a sacudir grãos de areia das palmas das mãos sem conseguir sacudir a humilhação
- Aleijou-se?
a justificar-me apetecendo-me mas é desaparecer
- Tropecei em qualquer coisa
sem que se visse nada em que se pudesse tropeçar a não ser eu própria, tropecei em mim própria, tropecei na velhice que me ensarilha os pés, eu ali portanto à mercê da piedade ou da chacota disfarçada dos outros, apetecendo-me desaparecer mas tentando um ar natural
(o trambolhão foi um percalço, vejam)
sem pernas perras, a espinha aprumada
(sabe Deus o esforço e mesmo assim)
a ensaiar os primeiros passos da fuga libertadora, mas logo o osso da anca a trair-me, a chamar-me a atenção
- Não achas que estás a abusar, menina?
a tratar-me por menina na esperança de que isso ajude em alguma coisa, menina, quem é que vai acreditar que já fui menina?
E no entanto, de súbito, homens na rua a tomarem-me o gosto com os olhos, a verrumarem-me o decote tecendo imaginações, afectando um ar natural que o olhar enviesado denuncia à légua, enquanto eu, baixando os olhos, me apresso num pudor lisonjeado.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

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De António Lobo Antunes ("O Meu Nome É Legião")

"e aí está o motivo dos santos não sorrirem na igreja, sorrirem de quê e depois no seu caso nem pulmões, nem esófago, mortes macacas, na melhor das hipóteses cabeças em bandejas, leões no coliseu, pedradas, o que é preciso sofrer para ter direito a um altar que espiga e há quem lhes exija bom feitio..."